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Um lugar para chamar de meu. Meu sítio virtual. Meu cadinho.

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'Onde eu possa juntar meus amigos, meus discos e livros...'

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O PATRÃO NOSSO DE CADA DIA

“Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar...” – ela nunca gostou dessa música, mas sempre lembrava dela de manhã.
Saiu da cama e foi cumprir seu ritual matinal. Um café. Um cigarro. Ou seria um cigarro e um café? De uns tempos pra cá, os dois aconteciam quase ao mesmo tempo... Um xixi. Lavar o rosto, escovar os dentes... pra quê? Queria dormir. Só dormir. Quando foi a última vez que dormiu de verdade? Dormir era a única coisa realmente sua que fazia nos últimos anos. Um momento só dela. Coisa rara...
Quando pequena sonhava crescer. Ter uma casa, filhos, uma família daquelas de comercial de margarina! Todos felizes em torno da mesa farta, sorrindo.
Foi até a geladeira. Era preciso tirar a carne moída do congelador. Fazer feijão... Logo o resto da família começaria a levantar, seu tempo de pensar estava acabando. Quando a primeira porta se abrisse colocaria aquele velho sorriso de novo no rosto, diria bom dia e fingiria ser feliz...
Há quanto tempo não se sentia verdadeiramente feliz? Há quanto tempo? Não que não gostasse dos filhos ou do marido. Pelo contrário. Amava a todos do fundo do coração. Mas não se amava mais... se sentia uma estranha. Uma invasora. Como naqueles filmes em que extraterrestres entram nos corpos das pessoas e tomam o lugar delas.
Acabou o leite, precisa lembrar de comprar.
Sonhava tanto antes! Planejava. Desejava. Queria tanta coisa: viajar, conhecer outras pessoas, outros lugares, mas...
Levou os filhos e o marido até o elevador. Fazia parte do ritual. O mundo tinha engolido seus sonhos. Enquanto trocava a roupa de cama, pensava em como teria sido diferente se tivesse tido mais coragem. Sempre fora covarde. Medo da solidão. Medo de sentir medo. Medo de não conseguir... Mas conseguir o quê?
De uns tempos pra cá ansiava sempre o momento de ficar só. Quando ela era só dela. Lia um livro, escrevia poemas, sonhava com coisas simples: um vestido novo, uma samambaia chorona. Por que será que chamam de chorona? Para ela as samambaias sempre pareceram tão felizes!
Precisava parar com isso. Definitivamente. Cada livro, cada poema a alimentava de vontades. Queria uma vida dupla. Queria um espaço só seu, um canto pros seus guardados. Um pedaço de mundo onde aquela opressão não pudesse entrar.
Se tivesse coragem Iria pra bem longe, um lugar onde ninguém soubesse quem ela é. Uma cidade pequena. Moraria numa casa de janelas amarelas, com onze horas na jardineira, telhado vermelho. Paredes forradas de quadros. Livros nas estantes. Uma varanda nos fundos que pegasse o sol da manhã, onde passaria horas lendo. E pararia de fumar. Sabia que pararia.
Certamente sentiria saudades. Mas de longe todos são tão bonitos! Só lembraria do que fosse bom.. Não ia pensar na roupa suja, na faxina do banheiro, no almoço... Talvez até chorasse de saudades. Quando se olhava no espelho e via o rosto marcado pelo tempo, ficava tentando encontrar algum vestígio do que fora. Tinha sido feliz. Sabia disso. O gosto dessa felicidade inundava sua boca, seu corpo.
Enquanto preparava o almoço ficava pensando em como fazer para mudar o rumo das coisas. Será que ainda haveria tempo? Será que conseguiria? Acabou de arrumar a cozinha. Acendeu o oitavo ou nono cigarro. Preciso comprar, pensou. Sentou-se na rede. Olhou a sala arrumada, as almofadas no lugar, e lamentou não ter coragem. Lamentou ter deixado as coisas chegarem àquele ponto. Se pudesse voltar no tempo, namoraria, transaria. Mas sem se deixar controlar.
Já há muito era assim: chorava quase todas as manhãs, entre espanadores, panelas de pressão, sabão em pó. Odiava cada uma dessas tarefas domésticas com todas as suas forças! Quando tinha uns quinze anos sonhava ter um jipe e ser dona do próprio nariz. Onde foi que tudo mudou? Mas e agora? O que a impedia de ir?
Estava morrendo. Secando. Não tinha mais viço. Não vivia mais, apenas existia. Ali, trancada naquela casa, fingindo ser feliz, aguardando o momento em que teria coragem.
No dia em que recomeçou a ler sabia que estava fazendo algo errado. Depois foram as músicas, desencavou do armário os discos que mais gostava e ouvia com o volume no máximo sempre que estava sozinha. Mas o pior foram os poemas. Não devia ter comprado nem caderno nem caneta! Conforme ia escrevendo, ia sentindo que não seria capaz de aguentar. Já há muito não comia direito. Não sentia fome. Mas essas coisas iam alimentando nela vontades. Alguma coisa lá dentro começou a se rebelar. Tinha gana de mandar tudo às favas, de sair de casa à noite, uivar para a lua, olhar o mar, há tempos não olhava o mar...
Colocou água no fogo pra fazer um café. De uns tempos pra cá, só fazia café na hora do almoço! Se quisessem café fresco de manhã que fossem fazer! Ela só fazia na hora do almoço! Riu de si mesma. Como era boba! Eles nunca notaram que o café na garrafa era velho. Não notaram que seu sorriso era velho. Pra eles só importava que as roupas estivessem limpas, que as panelas estivessem cheias.Ficou pensando em como se arranjariam sem ela. Ah, como gostava de cheiro do café fresco!
Enquanto tomava banho ficou olhando seu corpo. Ainda era bonita. Não era muito magra, mas estava longe de ser gorda. Os seios não eram caídos, não que fossem empinados, “olhando” pra cima, mas estavam em ordem. As pernas sempre foram fortes. Sentou-se no fundo da banheira e olhou para as mãos. Essas sim estavam tristes. Marcadas. Os dedos amarelados por conta do cigarro. Um maço por dia, às vezes mais. Calejadas. As unhas bem curtas e sem esmalte. Se soubesse fazer as unhas usaria um esmalte bem escuro, preto talvez. Menos vermelho. Nunca gostou de esmalte vermelho.
Era uma mulher de mãos tristes. Dizem que se pode saber a idade das pessoas olhando para as mãos delas. Sempre achou que dava pra saber se as pessoas eram felizes olhando para as mãos delas. As mãos, e não os olhos, são a janela da alma. As pessoas felizes gesticulam efusivamente. Suas mãos riem! Gargalham! Mas as pessoas tristes têm mãos quietas, gestos pequenos, tímidos, medrosos, inseguros. As mãos até choram. A gente não vê porque elas se escondem nos bolsos para chorar.
Entrou no elevador e reparou nas mãos dos vizinhos. A menina do segundo andar tinha mãos muito tristes para uma menina tão nova. Mas a velhinha do oitavo era só felicidade. Será que todo adolescente é triste? Ela fora tão feliz na adolescência.
Comprou o cigarro. Leite, ovo, frango, pão. Tinha mais uma coisa... Por que nunca fazia uma lista? Todas as mulheres no mercado seguravam uma lista. Nunca fora muito organizada. Batata, cenoura, chuchu, cebola. Reparou nas mãos do homem que comprava maçãs. Eram cansadas, mas eram felizes. Definitivamente felizes. Fingiu que olhava as maçãs pra disfarçar, não gostava de maçãs. Toda vez que ia ao mercado se divertia tentando descobrir a vida das pessoas observando seus carrinhos. Imaginava suas profissões, preferências sexuais, estado civil. Era assim que matava o tempo na fila.
A caixa estava grávida. Teve um impulso de dizer a ela que daquele momento em diante ela morreria mais rápido, mas se conteve. Talvez não fosse sempre assim. Existem mulheres que ficam melhores depois que têm filhos.
Voltou pra casa devagar. O dia estava acabando e dali a pouco todos voltariam pra casa. Invadiriam seu sossego, acabariam com seus sonhos. Tirariam tudo do lugar. Por que eles sempre desarrumam tudo? Subiu sozinha no elevador. Melhor assim.
Sentou-se na rede, colocou o som bem alto, olhou ao redor, se despediu daquela tarde, como quem se despede de um amante. Com um gosto de coisa errada na boca. Com uma vontade de quero mais.
Amanhã ela iria embora. Arrumaria a mala. Só o necessário: um jeans, duas ou três camisetas, um vestido, um casaco, um par de tênis, os chinelos...
Não: os chinelos iriam no pé. Pegaria um ônibus para uma cidade chamada Boa Esperança. Arrumaria um trabalho simples, faria café de manhã cedinho. E pão de queijo. Lavaria as roupas com alfazema, usaria vestidos leves, deixaria o cabelo solto. Pararia de fumar. E faria as unhas.

“Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar...” – ela nunca gostou dessa música, mas sempre lembrava dela de manhã.


08/1999

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