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Um lugar para chamar de meu. Meu sítio virtual. Meu cadinho.

Lugar de gritos e sussurros. Pedaço de mim.

'Onde eu possa juntar meus amigos, meus discos e livros...'

domingo, 5 de setembro de 2010

Da série: quando eu crescer eu quero ser...

Fernanda Montenegro

Viagem ao outro – sobre a arte do ator. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura,
Fundação Nacional de Artes Cênicas, 1988, p. 40-41


Acho que sou uma atriz convencional, porque sempre tive fascínio pela possibilidade de interpretar personagens, de tentar ser outro, de me enfronhar no outro, de buscar o outro. Pode parecer uma conversa de atrizona que vê a vida em termos de papéis, mas quero dizer que sou uma atriz que gosta de representar personagens, sim. Eu gosto de fazer papéis, sim. E compreendo que todos os papéis são fundamentais em um espetáculo. Essa é a minha convenção de atriz, e é a partir dela que posso dar o meu depoimento, que é o deste momento, em que ainda estou viva, porque não sei o que será o teatro daqui a trinta anos. E estou falando para aqueles que querem fazer não uma carreira, porque essa palavra está muito deturpada, mas uma vida de intérprete. Falo de atores para atores.
Minha posição dentro do conjunto de trabalho não é a única, mas é a minha maneira de ser. Pertenço a uma geração não-romântica no sentido do divismo, do grande astro e sua corte, da grande dama com sua corte, da vedete com vocação solista. Não gosto de intérprete que só trabalha quando o centro do palco é seu, quando a melhor luz é a sua e quando há um elenco que não perturba e não divide. Odeio elencos subservientes, atores servis. Amo trabalhar com colegas potentes, que entendam a harmonia de uma cena e contribuam com a sua força de intérpretes, participando da festa, do ritual, livres da competição burra e destruidora. (...) Nesse exercício, nessa busca constante de integração com o elenco e de harmonia com o diretor, minha posição é de atendimento, de dedicação e de assumir o meu posto. Como intérprete, eu me eduquei. Adquiri esse temperamento de ouvir o outro. Como é que se pode ser ator sem aprender a ouvir? Acho que é fundamental trabalhar ouvindo pessoas que às vezes ainda não estão preparadas técnica e intelectualmente, mas estão ali e têm uma opinião.
Minha maneira de ser atriz é por meio da minha definitiva ligação com o palco. Tenho uma total cumplicidade com o palco. Eu nem sei se é com o teatro. É com o palco. (...) O palco é a continuidade da minha casa, da minha vida. É o espaço do espetáculo que me interessa. Não penso em dirigir, não penso em cargos públicos e não sei como eu seria sem a força do espaço de atuação mesmo. E é por isso quesinto essa necessidade de ampliar o palco até lá fora. Derrubar a linha divisória ator-espectador. Eu não gosto do ator miudinho, que fica no cantinho, fazendo o seu codigozinho. O teatro é também uma realização de caráter social. Todos nós sabemos disso. Sou um tipo de atriz que faz os espetáculos convocando, instigando ou solicitando à platéia que venha junto. Eu não sou de quarta parede. O teatro é uma coisa tão boa, um espetáculo solidamente realizado é um acontecimento tão bonito, tão rico, tão cheio de sonho e plenitude, que tenho imenso prazer em convidar a platéia para essa festa, numa cumplicidade muito grande. Como se eu estendesse a minha mão, buscando as mãos dos espectadores. Não quero dizer com isso que eu cortejo o público. Não é isso,não. Muito pelo contrário.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Eu, o litoral e os sertões.

Nasci no litoral. Nesse pequeno espaço de terra localizado entre o Atlântico e a serra do Mar. A maresia corre em minhas veias. Os ventos marinhos sempre foram os responsáveis pelos nós nos meus cabelos e pelos sonhos de desbravamento que nasciam em meu peito. “O que há do outro lado do mar?”, foi à pergunta que ocupou minha cabeça durante muitos anos. Então veio Drummond, me pegou pela mão e me mostrou que “Minas é dentro e fundo”. E foi nesse momento, em que me pus de costas para o mar, que descobri que havia outras perguntas. “O que há do outro lado da serra?”. Drummond, generosamente, me apresentou outros olhares. Pegou-me pela mão e me levou ao grande sertão de Guimarães. E Guimarães me levou além, me mostrou que os homens de dentro da terra conheciam a força dos rios e dos ventos, a sede de caminhar. E Guimarães me levou até Gilberto Freyre, que me fez caminhar entre casas grandes e senzalas e me revelou quem eu era. Eu, uma mestiça litorânea, raquítica e neurastênica, descobri que dentro é que havia o mundo. Agora só me resta florescer. Flor de mandacaru, nascida no litoral e enraizada nos sertões dos homens fortes. “O sertão é um estado de espírito”, disse-me Nonato. Sim, agora eu sei, sou demasiado sertaneja, mandacaru e maresia fazem de mim essa que sou.