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Um lugar para chamar de meu. Meu sítio virtual. Meu cadinho.

Lugar de gritos e sussurros. Pedaço de mim.

'Onde eu possa juntar meus amigos, meus discos e livros...'

domingo, 26 de dezembro de 2010

de filhos e barcos

Pedro, meu filho...
Vinicius de moraes

Como eu nunca lutei para deixar-te nada além do amanhã indispensável: um quintal de terra verde onde corra, quem sabe, um córrego pensativo; e nessa terra, um teto simples onde possas ocultar a terrível herança que te deixou teu pai apaixonado - a insensatez de um coração constantemente apaixonado.

E porque te fiz com o meu sêmen homem entre os homens, e te quisera para sempre escravo do dever de zelar por esse alqueire, não porque seja meu, mas porque foi plantado com os frutos da minha mais dolorosa poesia.

Da mesma forma que eu, muitas noite, me debrucei sobre o teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua.

E porque vivemos tanto tempo juntos e tanto tempo separados, e o que o convívio criou nunca a ausência pôde destruir.

Assim como eu creio em ti porque nasceste do amor e cresceste no âmago de mim como uma árvore dentro de outra, e te alimentaste de minhas vísceras, e ao te fazeres homem rompeste meu alburno e estiraste os braços para um futuro em que acreditei acima de tudo.

E sendo que reconheço nos teus pés os pés do menino que eu fui um dia, em frente ao mar; e na aspereza de tuas plantas as grandes pedras que grimpei e os altos troncos que subi; em tuas palmas as queimaduras do Infinito que procurei como um louco tocar.

Porque tua barba vem da minha barba, e o teu sexo do meu sexo, e há em ti a semente da morte criada por minha vida.

E minha vida, mais que ser um templo, é uma caverna interminável, em cujo recesso esconde-se um tesouro que me foi legado por meu pai, mas cujo esconderijo eu nunca encontrei, e cuja descoberta ora te peço.

Como as amplas estradas da mocidade se transformaram nestas estreitas veredas da madureza, e o Sol que se põe atrás de mim alonga a minha sombra como uma seta em direção ao tenebroso Norte.

E a Morte me espera em algum lugar oculta, e eu não quero ter medo de ir ao seu inesperado encontro.
Por isso que eu chorei tantas lágrimas para que não precisasse chorar, sem saber que criava um mar de pranto em cujos vórtices te haverias também de perder.

E amordacei minha boca para que não gritasses e ceguei meus olhos para que não visses; e quanto mais amordaçado, mais gritavas; e quanto mais cego, mais vias.

Porque a poesia foi para mim uma mulher cruel em cujos braços me abandonei sem remissão, sem sequer pedir perdão a todas as mulheres que por ela abandonei.

E assim como sei que toda a minha vida foi uma luta para que ninguém tivesse mais que lutar:

Assim é o canto que te quero cantar, Pedro meu filho...

sem título X

Pais são como estaleiros: cada filho é um barco, que é forjado com carinho e atenção. Cuidado com o lastro, escolher o motor correto, a melhor madeira... Cada detalhe é pensado com muita calma para que o barco possa navegar em paz.

Então eles se acham prontos e querem ir. Não adianta dizer que ainda faltam alguns detalhes essenciais: mapas, bússolas, cartas náuticas. Não adianta gritar que os instrumentos precisam de ajustes. Não, eles cortam as amarras e vão.

E, ao estaleiro resta esperar. Que ele volte para uma visita de tempos em tempos, que ele apareça para trocar algumas peças avariadas, retocar o verniz...

Ficamos em terra firme, ao lado do farol, esperando...


Cais
Milton Nascimento/Ronaldo Bastos



Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar







domingo, 19 de dezembro de 2010

Dessas coisas que mudam tudo



Visão de cego
(Guinga- Aldir Blanc)

Um riso escancarado
de branco parafina
na boca tangerina...

O cego me fez
ver mil Brasis de uma só vez
nas fitas das Folias de Reis
ô cego alucinado:
barro marajoara
na colcha de retalho.

O cego me faz
ver mil Brasis e ainda mais
nas cianinhas dos carnavais
vou de liforme branco
na dorival jogada
na asa da jangada
eu vou por cima d'água,
a namorada do céu
sou herói de cordel.

O cego quer ver
alguém cantar em javanês
aboio triste no entardecer
cego surrealista:
um trem de celofone
trilhando um xilofone.

O cego me faz
ver nos vestidos dos varais
as prostituras louras do cais
o mar desde Arraiolo
na água pro monjolo,
o fio da navalha,
o couro da sandália,
a talhadeira e o cinzel:
cordas de um menestrel.

Na carranca branca da barcaça
a garça da alma pousou...
com licor do guapo genipapo
um gaio papagaio eu sou...
De porre, num fogo romã de manhã
a saudade que eu trouxe
me faz ver Oxum de bermuda,
- me acuda! fazendo windsurf
na ponta de Itapoã,
no rio Maracanã...

E o cego me diz
Que ela é feliz
Com tantos Brasis:
um riso escancarado
de branco parafina
na boca tangerina.

Guinga: voz e violão
Boca Livre (Zé Renato, Fernando Gama, Lourenço Baeta e Maurício Maestro): vozes
Marcos Suzano: percussão
Zé Nogueira - teclados


sem título IX


Adoro gente. Adoro estar entre gentes. Eu preciso de gente. Gente é minha matéria-irmã. É a forma como elas me afetam que faz de mim quem eu sou.

Paradoxalmente, é a solidão que me mantém sã. Preciso de pequenos afastamentos, reclusões profundamente profícuas. Preciso desse encontro metafísico meu-comigo-mesma-sem-mais-ninguém. Ufa!

Nesses momentos eu, eu mesma e a outra, colocamos tudo em ordem. Algumas conversas viram letras, outras pó...

(“Mas eu sinto que eu tô viva
a cada banho de chuva
que chega molhando meu corpo nu”)*

... somos tão diferentes e tão profundamente iguais. Não há tristeza nesse encontro, nem culpa. Nos mostramos e nos aceitamos como somos. Muitas vezes somos cruéis demais.

É essa dose regular de mim, que mantém as coisas no lugar. Que me equaliza.  

(“Eu sou assim,
se quiser gostar de mim,
eu sou assim... ")**


* Deja vù - Pitty
** Meu mundo é hoje - Wilson Batista

sábado, 18 de dezembro de 2010

das verdades











dois dedos de whisky e nenhuma vergonha na cara...

prenhe de sons

Temporal
Pitty


Chega simples como um temporal
Parecia que ia durar
Tantas placas e tantos sinais
Já não sei por onde caminhar.

E quando olhei no espelho
Eu vi meu rosto e já não reconheci
E então vi minha história
Tão clara em cada marca que tava ali.

Se o tempo hoje vai depressa
Não tá em minhas mãos
Cada minuto me interessa
Me resolvendo ou não.

Quero uma fermata que possa fazer
Agora o tempo me obedecer
E só então eu deixo
Os medos e as armas

Chega simples como um temporal
Parecia que ia durar
Tantas placas e tantos sinais
Já não sei por onde caminhar

E quando olhei no espelho
Eu vi meu rosto e já não reconheci
E então vi minha história
Tão clara em cada marca que tava ali.

Se o tempo hoje vai depressa
Não tá em minhas mãos
Cada minuto me interessa
Me resolvendo ou não.

Quero uma fermata que possa fazer
Agora o tempo me obedecer
E só então eu deixo
Os medos e as armas

Eu deixo os medos e as armas
Eu deixo os medos e as armas pra trás
E as armas pra trás
E as armas pra trás...

sem título VIII

sem título VII

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Só Você

Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes

É você
Só você
Que na vida vai comigo agora
Nós dois na floresta e no salão
Nada mais
Deita no meu peito e me devora
Na vida só resta seguir
Um risco, um passo, um gesto rio afora

É você
Só você
Que invadiu o centro do espelho
Nós dois na biblioteca e no saguão
Ninguém mais
Deita no meu leito e se demora
Na vida só resta seguir
Um risco, um passo, um gesto rio afora
Na vida só resta seguir
Um ritmo, um pacto e o resto rio afora

pensamentinho

Não é a solidão, essa mancha que tinge tudo. Não é o medo, gaiola fechada. Não é o desejo, iceberg no mar. Não, não é. É só esse nó que sufoca e arranha. Esse po´que cobre meus móveis. Esse imenso vazio repleto de sonhos que sou eu.

Lá fora

É noite e chove,
não há nuvens
ou estrelas.
Só a noite
e a chuva.
Um homem
passa apressado.
Uma mulher
Toma café.
A noite é escura.
A chuvafria
e fina.
No asfalto os pneus
dançam.
É noite e todos
dormem.
Coloco meu corpo
na cama e
vou pra rua,
pra chuva,
pra noite escura
e molhada.
Molhada
eu vou.

Passaraio

Passa tempo
passa vento
passa sol
...
e nada acontece.

sem título VI

Não sou forte, não sou nobre,
não sou boa, não sou má,
não sou bela nem sou feia,
não sou tela, tinta ou areia,
não sou moldura.

Não sou doença nem cura,
não sou louca, não sou santa,
não sou modelo, almoço ou janta.

Não sou nada.

sem título V

Eu, floresta de carvalho
coberta de musgos.
Velha árvore entre muitas.
Sem ninhos ou esquilos,
sem balanço, sem descanso.

Eu, barreira de corais
coberta de algas.
Velho recife entre muitos.
Sem peixes ou mariscos,
sem descanso, sem remanso.

Eu, mansão vitoriana
repleta de quartos.
Velha morada entre muitas.
Sem tapetes ou cortinas,
sem remanso, sem visitas.

Eu, oceano de estrelas
repleto de sal.
Velha rota entre muitas.
Sem navios ou jangadas,
sem visitas, sem cardumes,
sem viço, sem nada.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A Página do Relâmpago Elétrico

Beto Guedes e Ronaldo Bastos


Abre a folha do livro
Que eu lhe dou para guardar
E desata o nó dos cinco sentidos
Para se soltar
Que nem um som clareia o céu nem é de manhã
E anda debaixo do chão
Mas avoa que nem asa de avião

Pra rolar e viver levando jeito
De seguir rolando
Que nem canção de amor no firmamento
Que alguém pegou no ar
E depois jogou no mar

Pra viver do outro lado da vida
E saber atravessar
Prosseguir viagem numa garrafa
Onde o mar levar
Que é a luz que vai tescer o motor da lenda
Cruzando o céu do sertão
E um cego canta até arrebentar
O sertão vai virar mar
O mar vai virar sertão

Não ter medo de nenhuma careta
Que pretende assustar
Encontrar o coração do planeta
E mandar parar

Pra dar um tempo de prestar atenção nas coisas
Fazer um minuto de paz
Um silêncio que ninguém esquece mais
Que nem ronco do trovão
Que eu lhe dou para guardar

A paixão é que nem cobra de vidro
E também pode quebrar
Faz o jogo e abre a folha do livro
Apresenta o ás
Pra renascer em cada pedaço que ficou
E o grande amor vai juntar
E é coisa que ninguém separa mais
Que nem ronco de trovão
Que eu lhe dou para guardar


segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Exercendo outros eus: I I I


Déjà Vu
Pitty



Nenhuma verdade me machuca
Nenhum motivo me corrói
Até se eu ficar
Só na vontade, já não dói
Nenhuma doutrina me convence
Nenhuma resposta me satisfaz
Nem mesmo o tédio me surpreende mais

Mas eu sinto que eu tô viva
A cada banho de chuva
Que chega molhando o meu corpo nú

Nenhum sofrimento me comove
Nenhum programa me distrai
Eu ouvi promessas e isso não me atrai

E não há razão que me governe
Nenhuma lei pra me guiar
Eu tô exatamente aonde eu queria estar

Mas eu sinto que eu tô viva
A cada banho de chuva
Que chega molhando o meu corpo

A minha alma nem me lembro mais
Em que esquina se perdeu
Ou em que mundo se enfiou

Mas já faz algum tempo
Já faz algum tempo
Já faz algum tempo
Faz algum tempo

A minha alma nem me lembro mais
Em que esquina se perdeu
Ou em que mundo se enfiou

Mas eu não tenho pressa
Já não tenho pressa
Eu não tenho pressa
Não tenho pressa

Ave Caetano!


O Quereres
Caetano Veloso


Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde o queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói

Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock?n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus

O quereres e o estares sempre a fim
Do que em ti é em mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há, e do que não há em mim

domingo, 28 de novembro de 2010

“O porvir... Sim, o porvir...”

E agora, postas às armas, encarcerados os bandidos. E agora, José, Maria, João?
É chegada a hora de uma discussão aberta, adulta, franca, liberta de tabus religiosos ou morais sobre as drogas, seu uso e sua descriminilização; sobre o sistema carcerário brasileiro e o modo absurdo e desumano com que o estado trata os presos. É preciso diferenciar o ladrão de galinhas do matador e do chefe do tráfico e do barão das armas; sobre o código penal que permite milhões de manobras legais que atravancam o sistema judiciário; sobre a condição desumana em que vive grande parte de nossa população.
É preciso que os xerifes entendam que tanques não bastam.
“O porvir...
Sim, o porvir...”

(...) dizei-me vós, Senhor Deus (...)

Manhã de quinta-feira. Tomei banho, me arrumei e saí. Peguei o Tinguá na Central. Av. Rio de Janeiro. Brasil. Dutra. Tudo normal. Fui. Voltei. Quando cheguei em casa havia uma guerra na minha sala! A tevê mostrava carros incendiados, caminhões atravessados, tanques! Uma multidão de homens fugindo pela mata. Uma guerra no meu quintal!
No estúdio, com a apresentadora do telejornal, os chefes das forças “do bem”. Peitos inflados feito pombos, mandando todos seguirem sua vida normalmente. Normalmente?
Famílias inteiras estão fora de casa! ‘Senhor Deus dos desgraçados’, por acaso o Senhor viu a idade daqueles “fascínoras”? Viu o medo?
Estou tão sofrida com tudo isso. Tão impotente! Olhando aqueles rostos no camburão lembrei de Aldir Blanc e João Bosco. Trilha perfeita.


Gênesis (parto)
João Bosco & Aldir Blanc


Quando ele nasceu
foi no sufôco...
Tinha uma vaca, um burro e um louco
que recebeu Seu Sete...
Quando ele nasceu
foi de teimoso
com a manha e a baba do tinhoso.
Chovia canivete...
Quando ele nasceu
nasceu de birra...
Barro ao invés de incenso e mira,
cordão cortado com gilete...
Quando ele nasceu
sacaram o berro,
meteram faca, ergueram ferro...
Exu falou: ninguém se mete!
Quando ele nasceu
Tomaram cana,
um partideiro puxou samba...
Oxum falou: esse promete...

Ronco da Cuica
João Bosco & Aldir Blanc


Roncou, roncou
Roncou de raiva a cuíca
Roncou de fome
Alguém mandou
Mandou parar a cuíca, é coisa dos home
A raiva dá pra parar, pra interromper
A fome não dá pra interromper
A raiva e a fome é coisas dos home
A fome tem que ter raiva pra interromper
A raiva é a fome de interromper
A fome e a raiva é coisas dos home
É coisa dos home
É coisa dos home
A raiva e a fome
A raiva e a fome
Mexendo a cuíca
Vai tem que roncar

Tiro de Misericórdia 2
João Bosco & Aldir Blanc


O menino cresceu entre a ronda e a cana
correndo nos becos que nem ratazana.
Entre a punga e o afano, entre a carta e a ficha
subindo em pedreira que nem lagartixa.
Borel, Juramento, Urubu, Catacumba,
nas rodas de samba, no eró da macumba.
Matriz, Querosene, Salgueiro, Turano,
Mangueira, São Carlos, menino mandando,
ídolo de poeira, marafo e farelo,
um deus de bermuda e pé-de-chinelo,
imperador dos morros, reizinho nagô,
o corpo fechado por babalaôs.

Baixou Oxolufã com as espadas de prata,
com sua coroa de escuro e de vício.
Baixou Cão-Xangô com o machado de asa,
com seu fogo brabo nas mãos de corisco.
Ogunhê se plantou pelas encruzilhadas
Com todos seus ferros, com lança e enxada.
E Oxossi com seu arco e flecha e seus galos
e suas abelhas na beira da mata.
E Oxum trouxe pedra e água da cachoeira
em seu coração de espinhos dourados.
Iemanjá, o alumínio, as sereias do mar
e um batalhão de mil afogados.

Iansã trouxe as almas e os vendavais,
adagas e ventos, trovões e punhais.
Oxum-Maré largou suas cobras no chão.
Soltou sua trança, quebrou o arco-íris.
Omulu trouxe o chumbo e o chocalho de guizos
lançando a doença pra seus inimigos.
E Nana-Buruquê trouxe a chuva e a vassoura
Pra terra dos corpos, pro sangue dos mortos.

Exus na capa da noite soltara a gargalhada
e avisaram a cilada pros Orixás.
Exus, Orixás, menino, lutaram como puderam
mas era muita matraca e pouco berro.
E lá no horto maldito, no chão do Pendura-Saia,
Zumbi menino Lumumba tomba da raia
mandando bala pra baixo contra as falanges do mal,
arcanjos velhos, coveiros do carnaval.

- Irmãos, irmãs, irmãozinhos,
por que me abandonaram?
Por que nos abandonamos
em cada cruz?

- Irmãos, irmãs, irmãozinhos,
nem tudo está consumado.
A minha morte é só uma:
Ganga, Lumumba, Lorca, Jesus...

Grampearam o menino do corpo fechado
e barbarizaram com mais de cem tiros.
Treze anos de vida sem misericórdia
e a misericórdia no último tiro.

Morreu como um cachorro e gritou feito um porco
depois de pular igual a macaco.
Vou jogar nesses três que nem ele morreu:
num jogo cercado pelos sete lados.

Escadas Da Penha
João Bosco


Nas escadas da Penha. Penou
No cotoco da vela. Velou
A doideira da chama. Chamou
O seu anjo-de-guarda. Guardou
O remorso num canto. Cantou
A mentira da nêga. Negou
O ciúme que mata. Matou
O amigo da ala. Tá lá
Ta lá o valete no meio das cartas,
No jogo dos búzios, ta lá
No risco da pemba,
No giro da pomba,
No som do atabaque, ta lá
E tá no cigarro, no copo de cana, na roda de samba, tá lá
Nos olhos da nega, na faca do crime, no caco do espelho,
no gol do seu time...
Ta lá o amigo de ala
O amigo de ala. Matou
O ciúme que mata. Negou
A mentira da nêga. Cantou
O remorso num canto. Guardou
O seu anjo-de-guarda. Chamou
A doideira da chama. Velou
No cotoco da vela. Penou
Nas escadas da Penha...


segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Ressonância Magnética

De todos os poetas que devoro, de todos os livros, poemas e canções que ouço ou já ouvi, nenhum conseguiu me radiografar tão bem. Álvaro de Campos é meu aparelho de ressonância magnética, meu ecocardiograma.


"(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)"

Abismo

Entre mim e o abismo não há nada.
Ou quase nada.
Um passo apenas.
Um único passo.
Um mergulho cego e mudo e surdo.
Já não sou eu.
Sou o abismo que há em mim.
Profundo. Negro.
Não sei o que fiz do que fui.
Não sei o que fazer do que nunca mais serei.

Olho as pessoas na rua e não consigo entender de onde vem tanto riso, tantas alegrias, tantos planos. A vida se resolve numa esquina, num pé-sujo qualquer. Uma cerveja, uma trepada e fim.

Por que diabos isso não me basta?
Por quais infernos ainda terei que passar?
Por quantos desertos?
Até quando assim tão só?

Não creio em deuses.
Não crio pássaros, nem fecho gaiolas.
A vida me levou de mim.
Me raptou. Estuprou. Espancou. Abandonou.
A vida, isso que para muitos é dádiva, é para mim somente dor.

Não conheço ninguém em Pasárgada.
Não sou amiga de reis.
Então o que fazer de mim?
Onde colocar tanta dor?

Mais um passo.
Entre mim e o abismo não há mais nada.
Respiro.
Abro bem os olhos e vou.

Da série: exercendo outros eus III

Bicarbonato de Soda
Álvaro de Campos



Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!

Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?

Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...

Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,

Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconseqüência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!

Dêem-me de beber, que não tenho sede!

Da série: quando eu crescer eu quero ser...

Rita Lee

Pagu

Rita Lee e Zélia Duncan


Mexo, remexo na inquisição
Só quem já morreu na fogueira
Sabe o que é ser carvão
Uh! Uh! Uh! Uh!...

Eu sou pau prá toda obra
Deus dá asas à minha cobra
Hum! Hum! Hum! Hum!
Minha força não é bruta
Não sou freira
Nem sou puta...

Porque nem!
Toda feiticeira é corcunda
Nem!
Toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho
Que muito homem

Sou rainha do meu tanque
Sou Pagu indignada no palanque
Hanhan! Ah! Hanran!
Uh! Uh!
Fama de porra louca
Tudo bem!
Minha mãe é Maria Ninguém
Uh! Uh!...

Não sou atriz
Modelo, dançarina
Meu buraco é mais em cima
Porque nem!
Toda feiticeira é corcunda
Nem!
Toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho
Que muito homem...

sábado, 20 de novembro de 2010

À Isamar

A Bunda, que Engraçada


A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda – esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.
A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.
A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.
Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.
A bunda é a bunda,
rebunda.


ANDRADE, Carlos Drummond de. A bunda, que engraçada. In: O Amor Natural - 1992

Asas

Desculpe.
Foi apenas um roçar de asas.
Não precisa dizer nada,
seu silêncio já disse tudo.

Mil desculpas!
Foi apenas distração,
um leve roçar de asas.
E nada mais.

Um sonho,
Um desejo,
Uma querência,
Só isso. Nada mais.

Desculpe.
Já recolhi as asas
e voltei para a gaiola!

sem título, sem sentido e com maiúsculas

Inchado e mudo meu coração balança.

Sem Título e Com Maiúsculas

Fique assim. Quieto. Parado. Fique aí.
Gosto de te olhar. Muito. Você esfinge, você mistérios.
Não! Não diga nada. Não se mova.
Não me interessa o que você diz e sim o que você cala. Não me interessa para onde você vai, mas de onde você vem.
Não! Por favor!
Não fale, não ande. Apenas seja.
Expire, para que eu possa inspirar. Sue, para que eu possa matar minha sede. Cante, para que eu possa dançar com as estrelas.

sem título e sem maiúsculas II

um arrepio
calafrio
percorre todo o corpo
eriça pelos
enrijece músculos
umedece lábios
acende olhos.
tensão
tufão
tesão

Meio árvore, meio amélia

Não há em mim nem as curvas nem a força das fêmeas.

Não desperto desejos, não crio anseios, não inspiro devaneios e nem causo rubores.

Nenhuma deusa mora em mim. Passo longe das femmes fatales dos filmes noir. Tampouco possuo a brejeirice das gabrielas.

Sonhos? Não os provoco. Vontades? Não as causo. Não tenho admiradores secretos, nem seguidores anônimos.

Sou assim. Meio árvore, meio amélia. Profundas raízes, copa larga sombreando o pátio, sem ninhos ou passarinhos.

Absurdamente só.

sem título e sem maiúsculas

um olhar
um cheiro,
um toque
um não-me-toque,
um pode
um talvez,
um acaso
um afago,
um desejo
um beijo,
não! um beijo não!
uns beijos!

O outro.

Vem
o
outro
em mim.

Vai
em mim
o
outro.

O
outro
vai e vem
em mim.

outono

foi de repente
pedacinho de nada
perdido no tempo

foi longo,
denso nevoeiro,
vapores no ar

foi claro
e limpo
e belo
e eterno

"uma boca que eu sei
não porque me fala lindo
e sim, beija bem"


Outono, Djavan

dignitate

Sensatez: sen.sa.tez
sf (sensato+ez) Qualidade de sensato; bom senso, discrição, prudência.

Dignidade: dig.ni.da.de
sf (lat dignitate) 1 Modo de proceder que infunde respeito. 2 Elevação ou grandeza moral. 3 Honra. 4 Autoridade, gravidade. 5 Qualidade daquele ou daquilo que é nobre e grande. 6 Honraria. 7 Título ou cargo de graduação elevada. 8 Respeitabilidade. 9 Pundonor, seriedade. 10 Nobreza. D. essencial, Astrol: situação de um planeta em uma parte favorável do zodíaco. Antôn (acepções de 1 a 5): indignidade


Sensata eu seria se não falasse sobre isso aqui. Aliás, para ser exata, sensata eu seria se não falasse sobre isso em lugar nenhum!

Às favas com a sensatez!
Essa sou eu: insensata, insana, imprevisível.

Chega de ser comportada, perfeitinha, limpinha. Quero mesmo é a sujeira cotidiana que tempera a vida. Estou farta de polidez, sensatez... Quero a embriaguês da criação, o ópio das epifanias, o ludo das relações.

Cansei de ser digna! Quero é a indignidade da liberdade, livre de clichês.

Chega de ser a boa menina, a prendada, a aplicada, a inteligente, a recatada.

"Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?"

Dignidade? Sensatez?

Não quero impor respeito, quero ser respeitada. Não me importa uma grandeza moral que não me contém, nem uma honra que não seja a de estar viva.

De que vale ser nobre, altiva, respeitável e desenvolta, nesse mar de hipocrisia?

Não. Eu quero é ser indigna!!!

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O primeiro beijo

depois do primeiro beijo
- que quase me tira o chão -
depois desses sabores trocados
de sentir seu gosto
de me ver em seus olhos,
depois desse beijo,
é preciso recolhimento.
um tempo para
viver
reviver
rever

depois desse beijo
é necessário silêncio e prece
é preciso que o mundo
fique lá fora
cá dentro
só eu
e seu cheiro
e seu gosto
e seu rosto

então vou bordando
cada movimento
na memória

depois desse beijo
só é possível
voar

sem título IV

Primeiro foram os olhos.
Começaram a se esbarrar,
assim,
quase por acaso,
num lapso,
num átimo,
em suspense,
furtivos.

Depois foram as palavras.
Cada palavra sua
atraía
uma palavra minha
em versos,
redondilhas,
tonterías.

Então foram os pensamentos.
Se misturavam
se tocavam
e trovavam
e filosofavam.

Hoje meus olhos,
sem os seus,
veem borrões.
Minhas palavras
sem as suas
são vazias.
Meus pensamentos,
sem os seus,
são só pensamentos.

sem título III

Não me diga seu nome. Vou chamá-lo simplesmente homem e me chamarás mulher. Não querosaber onde vives, o que comes, seu livro preferido. Para mim só importa sua presença. Seu corpo moreno e forte, seus olhos tristes e sua boca molhada. Mais nada, tudo o mais é muito pouco. Quero de você apenas o que não é de mais ninguém.

Mote: um rubor, um torpor. um jogo de sons.

Glosa

Não sei quem és. Também não sabes quem sou. Teu nome, meu signo ou teu time de futebol. De ti sei pouco, pouco mesmo. Sei que respeitas os pontos e as vírgulas, sei que tens braços fortes e olhos tristes. Sei também que carregas o mundo nos ombros. Sei que gostas de morangos com creme e, quase sempre, preferes os beijos às mordidas. Não sei teu nome, mas te chamo. Basta um olhar, um roçar de olhos, um leve bater de cílios e tu vens... De tua boca só me importam os beijos. De tuas mãos às carícias.

Litoral e Sertão.

Litoral e sertão. Dentro e fora, texto e contexto. Oposto complementar. Imã. Íons. psitivo e negativo. Seus olhos me encontram e eu vou. Terra à dentro. mergulho nesse mar terracota, imensidão seca e pedrenta que me revela. Meus ventos de litoral, minhas falésias, meus penhascos e minhas grutas, tudo o que em mim é líquido e fluído, reflete sua concretude. Sabedoria ancestral. Força telúrica, água e terra. Juntos somos lama, lodo, mangue. A vida brota de nós dois. Útero. Quasar. Vulcão. Fossa abissal.

Entre nós

Entre nós
inerte
paira sempre
um beijo
não dado
uma palavra
não dita
um desejo
mal disfarçado

Entre nós
imberbe
paira sempre
um desejo
menino
um anseio
divino
uma vontade
sacra

Entre nós
pulsante
paira
o tempo.

O outro, outra vez...

Vem
de novo
ser
o
outro.

O
outro
ser
de novo
vem.

De novo
o
outro
vem
ser.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Para o meu irmão

Lá fora o dia amanhece róseo, claro, denso. Vem acompanhado de uma chuva fina, de um cheiro de terra. Dormir não tem sido fácil. Há em mim alguma coisa acordada que não me deixa dormir. Hoje é dia de Finados. Saudades do meu irmão, da minha bisa. Saudades de quando eu era criança e todos estavam vivos. “ No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, eu era feliz e ninguém estava morto”. Acho que nunca escrevi sobre o meu irmão. Acho que nunca chorei tudo o que tinha para chorar. Será que um dia choraremos tudo? Meu irmão não era um anjo. Era um irmão típico, daqueles que a gente ama e odeia em menos de um minuto! Lembro que quando ele era pequeno, tudo ele me perguntava:’ É, Iaia?’ Iaia. De Alexandra, virei Iaia. Coisas que irmãos menores fazem com a gente! Não sei se eu acredito ou não em deuses e céus, mas sei que acredito profundamente no amor. E sei também que enquanto convivemos, tivemos mais aventuras que brigas. E sei que ainda o amo.

Leminskiando...

Dor elegante
Itamar Assumpção e Paulo Leminski



Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, edens, analgésicos
Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra


quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Exercendo outros eus: I I

Novamente o Guinga e o Aldir. Instantâneos de instantes.


Zen-vergonha
(Guinga e Aldir Blanc)


Sobre o coqueiral, lua
E um violão:
Pronta a cenografia de segunda mão
Da Zen-vergonha.
Vivo nessa praia:
Sou da baixada Fluminense e do Himalaia.
O infinito vale tudo ou nada:
A escopeta é o zenbudismo da Baixada.
O torniquete, o pau-de-arara e a saraivada
-Minha aura toma e dá porrada
Me finjo de Alan Delão mas na realidade
Nessa terra é tudo Zé Trindade.
Lente de papel,
Última sessão:
Vermelho e verde na terceira dimensão
E um trapalhão
Que é Dedé, Mussum
Ou Zacaria entrando em fria
Gira e cai
No caldeirão
Peixe, camarão,
Dendê, farinha
Que ta podre mas ta bão.
Hermeto é mito! É guerra e paz. Qual é a realidade
Se há sempre um sonho que me invade?
O meu pirão é transreal,
Por isso não desanda:
Canguru é um bicho com varanda.
Zen-vergonha é assim, assim:
Muito curumim vende pó e cola,
Raspa, raspa e o camarin
Fica cheio assim de tupiniquim,

Aqui a Yoko rala côco e joga ioiô,
O Lennon veste um terno branco e é gigolô
E o último há de ser o primeiro:
A zonza da cigarra,
O ôco do cajueiro
E a revolta ainda maior:
Quem bebeu e bebe o meu suor?


Exercendo outros eus:

Além das pessoas que quero ser quando crescer, e que tenho publicado aqui, existem outras que eu queria ser agora, nesse ínfimo instante entre o passado e o futuro. Nessa ruptura de tempo que raramente conseguimos apreender na memória. Pessoas que conseguiram apoderar-se desse momento. Poemas, frases, canções. Instantes convertidos em palavras e sons.

Então, ao exercício:

Catavento e girassol
(Guinga - Aldir Blanc)


Meu catavento tem dentro
O o que há do lado de fora do teu girassol.
Entre o escancaro e o contido,
E eu te pedi sustenido
E você riu bemol.
Você só pensa no espaço,
Eu exigi duração...
Eu sou um gato de subúrbio,
Você é litorânea.

Quando eu respeito os sinais,
Vejo você de patins vindo na contramão
Mas quando ataco de macho,
Você se faz de capacho
E e não quer confusão.
Nenhum dos dois se entrega.
Nós não ouvimos conselho:
E eu sou você que se vai
No sumidouro do espelho.

Eu sou o Engenho de Dentro
E e você vive no vento do Arpoador.
Eu tenho um jeito arredio
E e você é expansiva - o inseto e a flor.
Um torce para Mia Farrow
E e o outro é Woody Allen...
Quando assovio uma seresta
Você dança havaiana.

Eu vou de tênis e jeans,
Encontro você demais:
Scarpin, soirée.
Quando o pau quebra na esquina,
Você ataca de fina
e me oferece em inglês:
É fuck you, bate-bronha...
E ninguém mete o bedelho,
Você sou eu que me vou
No sumidouro do espelho.

A paz é feita num motel
De alma lavada e passada
Pra descobrir logo depois
Que não serviu pra nada.
Nos dias de carnaval
Aumentam os desenganos:
Você vai pra Parati
E eu pro Cacique de Ramos...

Meu catavento tem dentro
O vento escancarado do Arpoador,
Teu girassol tem de fora
O escondido do Engenho de Dentro da flor.
Eu sinto muita saudade,
Você é contemporânea,
Eu penso em tudo quanto faço,
Você é tão espontânea.
Sei que um depende do outro
Só pra ser diferente,
Pra se completar.
Sei que um se afasta do outro,
No sufoco, somente pra se aproximar.
Cê tem um jeito verde de ser
E eu sou meio vermelho
Mas os dois juntos se vão
No sumidouro do espelho.


terça-feira, 26 de outubro de 2010

O Sono

Já procurei em toda parte. Atrás da porta, embaixo da cama, na gaveta de meias... Agora é sempre assim, deito pra dormir e o sono some! Passo o resto da noite procurando e nada. Procuro nos livros, nos ópios, nos pastores da madrugada, O sono está brincando comigo, testando meus limites, me arremessando contra o branco da página. Depois, quando desisto de tentar pegá-lo e me entrego às letras, o sono me mostra seus olhos, ilumina seu rosto e, leve, adormeço.

domingo, 24 de outubro de 2010

Leminski nunca é demais

SEM BUDISMO


Poema que é bom
acaba zero a zero.
Acaba com.
Não como eu quero.
Começa sem.
Com, digamos, certo verso,
veneno de letra,
bolero, Ou menos.
Tira daqui, bota dali,
um lugar, não caminho.
Prossegue de si.
Seguro morreu de velho,
e sozinho.

Da série: quando eu crescer eu quero ser...

Paulo Leminski
Do livro Caprichos e Relaxos


um dia desses quero ser
um grande poeta inglês
do século passado
e dizer
ó céu ó mar ó clã ó destino
lutar na índia em 1866
e sumir num naufrágio clandestino

sem título II

Hoje arrumei meus armários.
Joguei fora tudo que não me cabia mais,
Roupas que nunca usei,
Sapatos que machucavam passos,
Chapéus que proibiam idéias,
Arranquei do meu espelho essa imagem desgastada
Extirpei dos meus olhos o que não queria mais ver...
E guardei tudo o que sobrou numa caixinha de papel.
Tudo resumido em tão pouco,
Tudo reduzido à tão pouco,
Tudo terminado em quase nada.

Faxina

Vontade de mudar as coisas de prateleira.
Rever conceitos
Burlar medos
Parir coragens
Andar sem saber pra onde
Seguir a seta que indica o norte
Criar sortes
Gerar anseios
Gozar desejos
Conhecer
Mapear sonhos
Voar...

sem título I

lá fora, a estrada escura sugere contornos estranhos às coisas. e me arrasta para longe de mim. e então, eu, Alice, caio e me perco de mim. o que é isso tudo? qual deus há de me salvar de tamanha perdição? e será que mereço ser salva? deitada nos braços da Moira, olho os fios de outro ângulo e, longe de compreender a trama, posso reconhecer os pontos. foi meu cada passo dado nessa estrada, vontade minha. livre arbítrio? desorientação? palavras ditas, silêncios gritados, entrelinhas... suspensão. “Como um corpo ressequido que se estira num banho tépido, sentia um acréscimo de estima por si mesma!” talvez fosse a noite, talvez fosse a lua, mas talvez – eu disse talvez – fosse eu.

curtinhas

vontade de não me espantar com as coisas. alcançar um estágio de ‘desespantamento’, que não fosse torpor, mas que não sacudisse tanto!


encontros são sempre felizes. agourentas são as despedidas.


tema das manhãs de quinta: “Hoje te vejo em destino incerto / No meio desse imenso deserto / Que vai do nada pra lugar nenhum...”

vozes

uma boca que eu sei
não porque me fala lindo
e sim, beija bem

porque o mal nunca entrou pela boca do homem
para calar a boca: rícino

não é veneno a tua boca
quando chama a luz do dia.

pelos olhos, boca, narinas e orelhas
a tua presença
quer voar pela boca
quer sair por aí...

na lua, na rua, na nasa, em casa
brasa da boca de um dragão...
o bate-boca
é "boca braba"
a boca escorre palavrão
e verbos saindo das bocas...

da boca da noite
ao pingo do meio dia
boca é tubo
de alta tensão

e é boca a boca
que a nova se espalha
tudo que tua boca toca
vira a grande novidade
de todas as bocas do planeta

domingo, 5 de setembro de 2010

Da série: quando eu crescer eu quero ser...

Fernanda Montenegro

Viagem ao outro – sobre a arte do ator. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura,
Fundação Nacional de Artes Cênicas, 1988, p. 40-41


Acho que sou uma atriz convencional, porque sempre tive fascínio pela possibilidade de interpretar personagens, de tentar ser outro, de me enfronhar no outro, de buscar o outro. Pode parecer uma conversa de atrizona que vê a vida em termos de papéis, mas quero dizer que sou uma atriz que gosta de representar personagens, sim. Eu gosto de fazer papéis, sim. E compreendo que todos os papéis são fundamentais em um espetáculo. Essa é a minha convenção de atriz, e é a partir dela que posso dar o meu depoimento, que é o deste momento, em que ainda estou viva, porque não sei o que será o teatro daqui a trinta anos. E estou falando para aqueles que querem fazer não uma carreira, porque essa palavra está muito deturpada, mas uma vida de intérprete. Falo de atores para atores.
Minha posição dentro do conjunto de trabalho não é a única, mas é a minha maneira de ser. Pertenço a uma geração não-romântica no sentido do divismo, do grande astro e sua corte, da grande dama com sua corte, da vedete com vocação solista. Não gosto de intérprete que só trabalha quando o centro do palco é seu, quando a melhor luz é a sua e quando há um elenco que não perturba e não divide. Odeio elencos subservientes, atores servis. Amo trabalhar com colegas potentes, que entendam a harmonia de uma cena e contribuam com a sua força de intérpretes, participando da festa, do ritual, livres da competição burra e destruidora. (...) Nesse exercício, nessa busca constante de integração com o elenco e de harmonia com o diretor, minha posição é de atendimento, de dedicação e de assumir o meu posto. Como intérprete, eu me eduquei. Adquiri esse temperamento de ouvir o outro. Como é que se pode ser ator sem aprender a ouvir? Acho que é fundamental trabalhar ouvindo pessoas que às vezes ainda não estão preparadas técnica e intelectualmente, mas estão ali e têm uma opinião.
Minha maneira de ser atriz é por meio da minha definitiva ligação com o palco. Tenho uma total cumplicidade com o palco. Eu nem sei se é com o teatro. É com o palco. (...) O palco é a continuidade da minha casa, da minha vida. É o espaço do espetáculo que me interessa. Não penso em dirigir, não penso em cargos públicos e não sei como eu seria sem a força do espaço de atuação mesmo. E é por isso quesinto essa necessidade de ampliar o palco até lá fora. Derrubar a linha divisória ator-espectador. Eu não gosto do ator miudinho, que fica no cantinho, fazendo o seu codigozinho. O teatro é também uma realização de caráter social. Todos nós sabemos disso. Sou um tipo de atriz que faz os espetáculos convocando, instigando ou solicitando à platéia que venha junto. Eu não sou de quarta parede. O teatro é uma coisa tão boa, um espetáculo solidamente realizado é um acontecimento tão bonito, tão rico, tão cheio de sonho e plenitude, que tenho imenso prazer em convidar a platéia para essa festa, numa cumplicidade muito grande. Como se eu estendesse a minha mão, buscando as mãos dos espectadores. Não quero dizer com isso que eu cortejo o público. Não é isso,não. Muito pelo contrário.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Eu, o litoral e os sertões.

Nasci no litoral. Nesse pequeno espaço de terra localizado entre o Atlântico e a serra do Mar. A maresia corre em minhas veias. Os ventos marinhos sempre foram os responsáveis pelos nós nos meus cabelos e pelos sonhos de desbravamento que nasciam em meu peito. “O que há do outro lado do mar?”, foi à pergunta que ocupou minha cabeça durante muitos anos. Então veio Drummond, me pegou pela mão e me mostrou que “Minas é dentro e fundo”. E foi nesse momento, em que me pus de costas para o mar, que descobri que havia outras perguntas. “O que há do outro lado da serra?”. Drummond, generosamente, me apresentou outros olhares. Pegou-me pela mão e me levou ao grande sertão de Guimarães. E Guimarães me levou além, me mostrou que os homens de dentro da terra conheciam a força dos rios e dos ventos, a sede de caminhar. E Guimarães me levou até Gilberto Freyre, que me fez caminhar entre casas grandes e senzalas e me revelou quem eu era. Eu, uma mestiça litorânea, raquítica e neurastênica, descobri que dentro é que havia o mundo. Agora só me resta florescer. Flor de mandacaru, nascida no litoral e enraizada nos sertões dos homens fortes. “O sertão é um estado de espírito”, disse-me Nonato. Sim, agora eu sei, sou demasiado sertaneja, mandacaru e maresia fazem de mim essa que sou.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Sei lá, mil coisas!

Lembro do som da sua voz. Foi como se o tempo parasse para que pudesse ouvir. Fez-se silêncio e tudo o que havia era sua voz e o violão. Então eu te vi. Sentado na frente do teatro novo, e nada mais fazia sentido, e tudo era menos importante e tudo fazia sentido. Só existia você, o violão e uma certeza que ali era o meu porto.

Foi nesse momento que eu soube que era sua e tive certeza que você seria meu. Lembro do sorriso de garanhão italiano. E então veio a corte. Nos exibimos um para o outro, abrimos nossas caudas, nos mostramos. Primeiro nos demos as mãos e cada vez que sua mão encostava-se à minha, meu peito parecia que ia explodir!

E então veio o beijo. O primeiro. E eu soube, ali, naquele momento dentro do teatro, que minha vida era sua. Que meu corpo era seu. E que tudo o que havia vivido antes era só um ensaio. Soube, ali, naquele momento, que você era a minha estréia. Sei lá, mil coisas!!

E agora, enquanto escrevo, minhas pernas tremem como tremiam antes, meu coração pula e tenta sair do peito para te encontrar. E te espera. E te deseja como desejava há dezoito anos.

O quê eu posso dizer mais? Apenas posso agradecer aos deuses do teatro por terem me levado até você.

Pra você:

Não deveria se chamar amor
Paulinho Moska

O amor que eu te tenho é um afeto tão novo
Que não deveria se chamar amor
De tão irreconhecível, tão desconhecido
Que não deveria se chamar amor

Poderia se chamar nuvem
Porque muda de formato a cada instante
Poderia se chamar tempo
Porque parece um filme a que nunca assisti antes

Poderia se chamar la-bi-rin-to
Porque sinto que não conseguirei escapulir
Poderia se chamar a u r or a
Pois vejo um novo dia que está por vir

Poderia se chamar abismo
Pois é certo que ele não tem fim
Poderia se chamar horizonte
Que parece linha reta mas sei que não é assim

Poderia se chamar primeiro beijo
Porque não lembro mais do meu passado
Poderia se chamar último adeus
Que meu antigo futuro foi abandonado

Poderia se chamar universo
Porque sei que não o conhecerei por inteiro
Poderia se chamar palavra louca
Que na verdade quer dizer: aventureiro

Poderia se chamar silêncio
Porque minha dor é calada e meu desejo é mudo
E poderia simplesmente não se chamar
Para não significar nada e dar sentido a tudo

Amo. Simplesmente!!

domingo, 22 de agosto de 2010

pizza com fanta laranja

saudades da minha bisavó. muitas. saudades da pizza de muzarella com fanta laranja... lembro do cheirinho dela entrando em casa, com seus vestidos bm cortados, sua bengala de madeira bem lustrosa e seu sorriso de paz. lembro dela com tanta força que nem parece que convivemos tão pouco. lembro dela já doente e a gente pulando na cama, brincando com o controle remoto da tv – que era enorme e tinha três botões: ligar, canal e volume! – ela sentindo dor mas muito feliz de ter os bisnetos pulando nela! até hoje quando preciso de carinho, de afago, quando acho que tudo vai acabar e que eu não vou suportar, chamo por ela... BIBINA CADÊ VOCÊ?

das dores do mundo

Estou doente. Triste. Desesperançada. Com vontade de chutar o pau da barraca e ficar debaixo dos escombros. Escondida, protegida de tudo o que parece estar inteiro mas por dentro já era. Essa tristeza que me consome não tem nome nem parece ter fim. São as minhas dores, as dores do mundo, as dores do que estão no mundo. Uma mistura de tantas dores que não há remédio que faça passar. Cada pequena vitória parece apenas mas uma tábua solta no meio do maremoto. Náufraga de mim mesma. Estou afundando!! É tanta dor que tenho a sensação de que vou arrebentar.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

de sertões

floração. florescer. “florar”. flor.
flora. fauna. primavera.
filha. filho neto.
recomeçar. refazer.
reflorescer.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Airiando 2

"Recomeçar, recomeçar sempre. recomeçar o já feito, o nunca terminado. E sempre só."

Airiando

"(...)e recomeçar era a tarefa mais repetida do mundo."

Da série: por que não fui eu que fiz?

Hoje ouvi que estou revigorada! Renovada! Poeta quando fala toca muito fundo...


Viviane Mosé
Poema do livro Pensamento do Chão, poemas em prosa e verso.



quem tem olhos pra ver o tempo soprando sulcos na pele soprando sulcos na pele soprando sulcos?
o tempo andou riscando meu rosto
com uma navalha fina

sem raiva nem rancor
o tempo riscou meu rosto
com calma

(eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença)

acho que a vida anda passando a mão em mim.
a vida anda passando a mão em mim.
acho que a vida anda passando.
a vida anda passando.
acho que a vida anda.
a vida anda em mim.
acho que há vida em mim.
a vida em mim anda passando.
acho que a vida anda passando a mão em mim

e por falar em sexo quem anda me comendo
é o tempo
na verdade faz tempo mas eu escondia
porque ele me pegava à força e por trás

um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo
se você tem que me comer
que seja com o meu consentimento
e me olhando nos olhos

acho que ganhei o tempo
de lá pra cá ele tem sido bom comigo
dizem que ando até remoçando

significantes?

Meus sonhos
tornados estrelas
piscam pra mim


metido nas pequenas coisas
o amor se perde

e vai

O PATRÃO NOSSO DE CADA DIA

“Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar...” – ela nunca gostou dessa música, mas sempre lembrava dela de manhã.
Saiu da cama e foi cumprir seu ritual matinal. Um café. Um cigarro. Ou seria um cigarro e um café? De uns tempos pra cá, os dois aconteciam quase ao mesmo tempo... Um xixi. Lavar o rosto, escovar os dentes... pra quê? Queria dormir. Só dormir. Quando foi a última vez que dormiu de verdade? Dormir era a única coisa realmente sua que fazia nos últimos anos. Um momento só dela. Coisa rara...
Quando pequena sonhava crescer. Ter uma casa, filhos, uma família daquelas de comercial de margarina! Todos felizes em torno da mesa farta, sorrindo.
Foi até a geladeira. Era preciso tirar a carne moída do congelador. Fazer feijão... Logo o resto da família começaria a levantar, seu tempo de pensar estava acabando. Quando a primeira porta se abrisse colocaria aquele velho sorriso de novo no rosto, diria bom dia e fingiria ser feliz...
Há quanto tempo não se sentia verdadeiramente feliz? Há quanto tempo? Não que não gostasse dos filhos ou do marido. Pelo contrário. Amava a todos do fundo do coração. Mas não se amava mais... se sentia uma estranha. Uma invasora. Como naqueles filmes em que extraterrestres entram nos corpos das pessoas e tomam o lugar delas.
Acabou o leite, precisa lembrar de comprar.
Sonhava tanto antes! Planejava. Desejava. Queria tanta coisa: viajar, conhecer outras pessoas, outros lugares, mas...
Levou os filhos e o marido até o elevador. Fazia parte do ritual. O mundo tinha engolido seus sonhos. Enquanto trocava a roupa de cama, pensava em como teria sido diferente se tivesse tido mais coragem. Sempre fora covarde. Medo da solidão. Medo de sentir medo. Medo de não conseguir... Mas conseguir o quê?
De uns tempos pra cá ansiava sempre o momento de ficar só. Quando ela era só dela. Lia um livro, escrevia poemas, sonhava com coisas simples: um vestido novo, uma samambaia chorona. Por que será que chamam de chorona? Para ela as samambaias sempre pareceram tão felizes!
Precisava parar com isso. Definitivamente. Cada livro, cada poema a alimentava de vontades. Queria uma vida dupla. Queria um espaço só seu, um canto pros seus guardados. Um pedaço de mundo onde aquela opressão não pudesse entrar.
Se tivesse coragem Iria pra bem longe, um lugar onde ninguém soubesse quem ela é. Uma cidade pequena. Moraria numa casa de janelas amarelas, com onze horas na jardineira, telhado vermelho. Paredes forradas de quadros. Livros nas estantes. Uma varanda nos fundos que pegasse o sol da manhã, onde passaria horas lendo. E pararia de fumar. Sabia que pararia.
Certamente sentiria saudades. Mas de longe todos são tão bonitos! Só lembraria do que fosse bom.. Não ia pensar na roupa suja, na faxina do banheiro, no almoço... Talvez até chorasse de saudades. Quando se olhava no espelho e via o rosto marcado pelo tempo, ficava tentando encontrar algum vestígio do que fora. Tinha sido feliz. Sabia disso. O gosto dessa felicidade inundava sua boca, seu corpo.
Enquanto preparava o almoço ficava pensando em como fazer para mudar o rumo das coisas. Será que ainda haveria tempo? Será que conseguiria? Acabou de arrumar a cozinha. Acendeu o oitavo ou nono cigarro. Preciso comprar, pensou. Sentou-se na rede. Olhou a sala arrumada, as almofadas no lugar, e lamentou não ter coragem. Lamentou ter deixado as coisas chegarem àquele ponto. Se pudesse voltar no tempo, namoraria, transaria. Mas sem se deixar controlar.
Já há muito era assim: chorava quase todas as manhãs, entre espanadores, panelas de pressão, sabão em pó. Odiava cada uma dessas tarefas domésticas com todas as suas forças! Quando tinha uns quinze anos sonhava ter um jipe e ser dona do próprio nariz. Onde foi que tudo mudou? Mas e agora? O que a impedia de ir?
Estava morrendo. Secando. Não tinha mais viço. Não vivia mais, apenas existia. Ali, trancada naquela casa, fingindo ser feliz, aguardando o momento em que teria coragem.
No dia em que recomeçou a ler sabia que estava fazendo algo errado. Depois foram as músicas, desencavou do armário os discos que mais gostava e ouvia com o volume no máximo sempre que estava sozinha. Mas o pior foram os poemas. Não devia ter comprado nem caderno nem caneta! Conforme ia escrevendo, ia sentindo que não seria capaz de aguentar. Já há muito não comia direito. Não sentia fome. Mas essas coisas iam alimentando nela vontades. Alguma coisa lá dentro começou a se rebelar. Tinha gana de mandar tudo às favas, de sair de casa à noite, uivar para a lua, olhar o mar, há tempos não olhava o mar...
Colocou água no fogo pra fazer um café. De uns tempos pra cá, só fazia café na hora do almoço! Se quisessem café fresco de manhã que fossem fazer! Ela só fazia na hora do almoço! Riu de si mesma. Como era boba! Eles nunca notaram que o café na garrafa era velho. Não notaram que seu sorriso era velho. Pra eles só importava que as roupas estivessem limpas, que as panelas estivessem cheias.Ficou pensando em como se arranjariam sem ela. Ah, como gostava de cheiro do café fresco!
Enquanto tomava banho ficou olhando seu corpo. Ainda era bonita. Não era muito magra, mas estava longe de ser gorda. Os seios não eram caídos, não que fossem empinados, “olhando” pra cima, mas estavam em ordem. As pernas sempre foram fortes. Sentou-se no fundo da banheira e olhou para as mãos. Essas sim estavam tristes. Marcadas. Os dedos amarelados por conta do cigarro. Um maço por dia, às vezes mais. Calejadas. As unhas bem curtas e sem esmalte. Se soubesse fazer as unhas usaria um esmalte bem escuro, preto talvez. Menos vermelho. Nunca gostou de esmalte vermelho.
Era uma mulher de mãos tristes. Dizem que se pode saber a idade das pessoas olhando para as mãos delas. Sempre achou que dava pra saber se as pessoas eram felizes olhando para as mãos delas. As mãos, e não os olhos, são a janela da alma. As pessoas felizes gesticulam efusivamente. Suas mãos riem! Gargalham! Mas as pessoas tristes têm mãos quietas, gestos pequenos, tímidos, medrosos, inseguros. As mãos até choram. A gente não vê porque elas se escondem nos bolsos para chorar.
Entrou no elevador e reparou nas mãos dos vizinhos. A menina do segundo andar tinha mãos muito tristes para uma menina tão nova. Mas a velhinha do oitavo era só felicidade. Será que todo adolescente é triste? Ela fora tão feliz na adolescência.
Comprou o cigarro. Leite, ovo, frango, pão. Tinha mais uma coisa... Por que nunca fazia uma lista? Todas as mulheres no mercado seguravam uma lista. Nunca fora muito organizada. Batata, cenoura, chuchu, cebola. Reparou nas mãos do homem que comprava maçãs. Eram cansadas, mas eram felizes. Definitivamente felizes. Fingiu que olhava as maçãs pra disfarçar, não gostava de maçãs. Toda vez que ia ao mercado se divertia tentando descobrir a vida das pessoas observando seus carrinhos. Imaginava suas profissões, preferências sexuais, estado civil. Era assim que matava o tempo na fila.
A caixa estava grávida. Teve um impulso de dizer a ela que daquele momento em diante ela morreria mais rápido, mas se conteve. Talvez não fosse sempre assim. Existem mulheres que ficam melhores depois que têm filhos.
Voltou pra casa devagar. O dia estava acabando e dali a pouco todos voltariam pra casa. Invadiriam seu sossego, acabariam com seus sonhos. Tirariam tudo do lugar. Por que eles sempre desarrumam tudo? Subiu sozinha no elevador. Melhor assim.
Sentou-se na rede, colocou o som bem alto, olhou ao redor, se despediu daquela tarde, como quem se despede de um amante. Com um gosto de coisa errada na boca. Com uma vontade de quero mais.
Amanhã ela iria embora. Arrumaria a mala. Só o necessário: um jeans, duas ou três camisetas, um vestido, um casaco, um par de tênis, os chinelos...
Não: os chinelos iriam no pé. Pegaria um ônibus para uma cidade chamada Boa Esperança. Arrumaria um trabalho simples, faria café de manhã cedinho. E pão de queijo. Lavaria as roupas com alfazema, usaria vestidos leves, deixaria o cabelo solto. Pararia de fumar. E faria as unhas.

“Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar...” – ela nunca gostou dessa música, mas sempre lembrava dela de manhã.


08/1999

quarta-feira, 9 de junho de 2010

cansaço

Cheia. Abarrotada. Transbordando.
É tanta coisa. É pouco tempo.
tictactictactictactictactictactictactictac
Lá fora as luzes do dia já estão parindo as luzes da cidade
E eu ainda não consegui fazer nada!!!
“O cérebro chamado está desligado ou fora da área de cobertura...”

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Da série: quando eu crescer eu quero ser...

Eduardo Galeano
Janela Sobre as Proibições

Publicado em As Palavras Andantes.



Na parede de uma botequim de Madri, há um cartaz que diz: Proibido Cantar.
Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, há um cartaz que diz: Proibido brincar com os carrinhos porta bagagens.
Ou seja: Ainda há gente que canta, ainda há gente que brinca.

domingo, 16 de maio de 2010

...

Eu, joanadarkouvindovozes,
corro em direção à luz que
acendeapagaacende
e, hamiletiando
sendonãosendo
me pergunto se nesse reino há algo de bom
ou se todos os podres de Macbeth já nos
alcançaramancharamudaramarcaram
Eu, joanadarkouvindovozes,
me pergunto
se devo ir ou ficar
minha voz calada
grita
sussurra
implora
por ouvidos que ouçam
bocas que beijem
meus braços feitos para abraçar
estão cheios de corpos vazios
“Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”
Onde é que há gente?

terça-feira, 11 de maio de 2010

Cansada

Minha alma hoje acordou cansada.
Cheia de meninosmalabaristas de sinal
de mães de barrigas vazias e olhos cheios
de pais de bolsos vazios e caras cheias
de políticos de bolsos cheios e corações vazios
Minha alma tomada de todas as dores do mundo
Acordou cansada
sem vontade
sem sonhos
sem nomes
sem cores
Minha alma, doída, triste,
acordou cansada
virou pro lado e voltou a dormir...

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Dá série: quando eu crescer eu quero ser...

Foi o sol. Ou a névoa fina que encobria a cidade hoje cedo. Cedinho. Talvez tenha sido a névoa primeiro, dando um ar de fim de tarde... Mas era cedo.
No caminho até o ponto de ônibus, coloquei-me a serviço do peripatético. “ O bom pensar” como disse Lobato. E então fui cercada. Pensamentos que vinham de todos os lados, dos meus bolsos, minha bolsa, meus pés.
Lembrei-me do espanto estampado no rosto minha filha, era pequena ainda com no máximo 5 anos, quando lhe perguntaram o quê ela “queria ser quando crescer?” Ela olhou bem séria e disse: “ Aisha, ué?! Quando eu crescer eu vou ser Aisha”. (Talvez caiba explicar que Aisha é o nome dela).
Foi então que aconteceu, uma enxurrada de versos. Vieram com muita pressa, num rio caudaloso de estrofes.
E então pensei: quem eu queria ser quando crescesse, caso não fosse continuar sendo eu mesma. Dá pra entender? E resolvi escrever essa série: pessoas pra ser quando crescer.

Eis a primeira:


Cecília Meireles
Mulher ao Espelho
publicado em MAR ABSOLUTO - 1945.


Hoje, que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.
Já fui loura, já fui morena,
Já fui Margarida e Beatriz,
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.
Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?
Por fora, serei como queira,
a moda, que vai me matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.
Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.
Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Da série: por que não fui que fiz?

Paciência
Lenine


Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para

Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora vou na valsa
A vida é tão rara

Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência
O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência

Será que é o tempo que lhe falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder
E quem quer saber
A vida é tão rara (Tão rara)

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para (a vida não para não)

Será que é tempo que me falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder
E quem quer saber
A vida é tão rara (tão rara)

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para
(a vida não para não... a vida não para)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Bate estaca

Bate estaca
Bate estaca
Martelando
Martelando
Acordo e sinto que tentam
Enfiar coisas na minha cabeça

Bate estaca
Bate estaca
Martelando
Martelando
Não sou máquina, sou gente

Todos tristes presos em suas caras de trabalho
Todos apertados em suas roupas de trabalho
Todos saltos altos em seus sapatos de trabalho
Num baile de máscaras

Quero leveza, quero brilho, quero alma
Vamos falar de Godart
Sacanear os livros da Danielle Steel
Rir com Jorge Amado
Dançar um frevo rasgado
Estou aqui
Mas não quero entrar nessa lata
Prefiro ser a galinha
Que ser a sardinha!

Alexandra Moraes e Luciano Pozino

domingo, 2 de maio de 2010

Rever. Reverso. Vide-o-verso.
Antes. Atrás. Ante.
Início. Começo. Parto. Idéia.
Sonho. Desejo. Anseio. Vontade.
Medo. Falta. Coragem.
Fome.
Antigo. Novíssimo. Quebrado. Rompido. Perdido.
Escangalhado.
Dentro. Fora. Perto. Ao lado.
Alado. Voador.
Dentro tudo é visto pelo lado de fora.

sábado, 1 de maio de 2010

Da série: por que não fui que fiz?

quem tem olhos pra ver o tempo soprando sulcos na pele soprando sulcos na pele soprando sulcos?
o tempo andou riscando meu rosto
com uma navalha fina

sem raiva nem rancor
o tempo riscou meu rosto
com calma

(eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença)

acho que a vida anda passando a mão em mim.
a vida anda passando a mão em mim.
acho que a vida anda passando.
a vida anda passando.
acho que a vida anda.
a vida anda em mim.
acho que há vida em mim.
a vida em mim anda passando.
acho que a vida anda passando a mão em mim

e por falar em sexo quem anda me comendo
é o tempo
na verdade faz tempo mas eu escondia
porque ele me pegava à força e por trás

um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo
se você tem que me comer
que seja com o meu consentimento
e me olhando nos olhos

acho que ganhei o tempo
de lá pra cá ele tem sido bom comigo
dizem que ando até remoçando

Viviane Mozé
Poema do livro Pensamento do Chão, poemas em prosa e verso.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Repleta de Sol

É quase inverno, mas um sol quente me esquenta enquanto escrevo, aqui nessa pedra olhando o mar.
A minha volta as pessoas passam apressadas, atarefadas e nem reparam no sol, no vento ou no mar. Paisagem cotidiana que vai perdendo a cor à medida que se torna familiar.
Mas, sentado bem a minha esquerda, um homem pinta a paisagem, cavalete, tela, tinta e um olhar ávido que não perde nada: o barquinho do pescador, o iate do magnata, nem mesmo essa que vos fala ficou de fora da tela.
Quando sentei aqui pensando no que escrever e vi as pessoas com passos rápidos cumprindo suas rotinas, achei que escreveria algo triste, amargo e seco como elas, mas esse homem à minha esquerda me fez lembrar de algo que li há muito tempo: “(...) A morte é a única conselheira sábia que possuímos. Toda vez que sentir, como sente sempre, que está tudo errado e você está prestes a ser aniquilado, vire-se para sua morte e pergunte se é verdade. Ela lhe dirá que está errado; que nada importa realmente, além do toque dela. Sua morte lhe dirá: ‘Ainda não o toquei’. (...)”
É. Nada disso importa e cabe à mim beber desse sol, desse mar, me deixar lamber pelo vento e não me deixar esquecer que sou eu quem escreve a minha história e que ela pode sim ser quente e clara, intensa e doce, louca e feliz.
Sorrio. Fecho meu caderno e vou embora com a alma e o corpo repletos de sol!

quinta-feira, 29 de abril de 2010

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Abrindo as comportas (e as compotas)

Escrever pra mim é mais antigo que gostar de chocolate. Quer dizer, escrever pra mim é tão antigo quanto gostar de chocolate. Sempre escrevi. Muito. Compulsivamente. Milhões de papeizinhos espalhados por toda parte. Fragmentos. Desabafos. Declarações. Sou muito falastrona e muito impulsiva. Durante esses tantos anos em que acumulei escritos, fiquei sempre esperando a hora certa de mostrá-los a alguém. Mas sou também muito insegura. E se não gostassem? E se fosse tudo tão absolutamente terrível que nunca merecesse ser visto? Sou falastrona - já disse isso – e escrevo como quem fala. Nunca parei para me preocupar com a forma como escrevo, sempre dei mais atenção ao queria dizer. Meus escritos são minhas confissões, meus berros, meus medos e coragens. Pois bem, agora que já sou avó, que já plantei muitas árvores, acho que chegou a hora de deixar que leiam o quê escrevo. Pode ser que realmente fique provado que nada disso tem a menor importância, mas ainda assim resolvi dar a cara a tapa, colocar o meu na roda e ver no que vai dar.