Foi o sol. Ou a névoa fina que encobria a cidade hoje cedo. Cedinho. Talvez tenha sido a névoa primeiro, dando um ar de fim de tarde... Mas era cedo.
No caminho até o ponto de ônibus, coloquei-me a serviço do peripatético. “ O bom pensar” como disse Lobato. E então fui cercada. Pensamentos que vinham de todos os lados, dos meus bolsos, minha bolsa, meus pés.
Lembrei-me do espanto estampado no rosto minha filha, era pequena ainda com no máximo 5 anos, quando lhe perguntaram o quê ela “queria ser quando crescer?” Ela olhou bem séria e disse: “ Aisha, ué?! Quando eu crescer eu vou ser Aisha”. (Talvez caiba explicar que Aisha é o nome dela).
Foi então que aconteceu, uma enxurrada de versos. Vieram com muita pressa, num rio caudaloso de estrofes.
E então pensei: quem eu queria ser quando crescesse, caso não fosse continuar sendo eu mesma. Dá pra entender? E resolvi escrever essa série: pessoas pra ser quando crescer.
Eis a primeira:
Cecília Meireles
Mulher ao Espelho
publicado em MAR ABSOLUTO - 1945.
Hoje, que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.
Já fui loura, já fui morena,
Já fui Margarida e Beatriz,
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.
Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?
Por fora, serei como queira,
a moda, que vai me matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.
Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.
Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.
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