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Um lugar para chamar de meu. Meu sítio virtual. Meu cadinho.

Lugar de gritos e sussurros. Pedaço de mim.

'Onde eu possa juntar meus amigos, meus discos e livros...'

domingo, 26 de dezembro de 2010

de filhos e barcos

Pedro, meu filho...
Vinicius de moraes

Como eu nunca lutei para deixar-te nada além do amanhã indispensável: um quintal de terra verde onde corra, quem sabe, um córrego pensativo; e nessa terra, um teto simples onde possas ocultar a terrível herança que te deixou teu pai apaixonado - a insensatez de um coração constantemente apaixonado.

E porque te fiz com o meu sêmen homem entre os homens, e te quisera para sempre escravo do dever de zelar por esse alqueire, não porque seja meu, mas porque foi plantado com os frutos da minha mais dolorosa poesia.

Da mesma forma que eu, muitas noite, me debrucei sobre o teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua.

E porque vivemos tanto tempo juntos e tanto tempo separados, e o que o convívio criou nunca a ausência pôde destruir.

Assim como eu creio em ti porque nasceste do amor e cresceste no âmago de mim como uma árvore dentro de outra, e te alimentaste de minhas vísceras, e ao te fazeres homem rompeste meu alburno e estiraste os braços para um futuro em que acreditei acima de tudo.

E sendo que reconheço nos teus pés os pés do menino que eu fui um dia, em frente ao mar; e na aspereza de tuas plantas as grandes pedras que grimpei e os altos troncos que subi; em tuas palmas as queimaduras do Infinito que procurei como um louco tocar.

Porque tua barba vem da minha barba, e o teu sexo do meu sexo, e há em ti a semente da morte criada por minha vida.

E minha vida, mais que ser um templo, é uma caverna interminável, em cujo recesso esconde-se um tesouro que me foi legado por meu pai, mas cujo esconderijo eu nunca encontrei, e cuja descoberta ora te peço.

Como as amplas estradas da mocidade se transformaram nestas estreitas veredas da madureza, e o Sol que se põe atrás de mim alonga a minha sombra como uma seta em direção ao tenebroso Norte.

E a Morte me espera em algum lugar oculta, e eu não quero ter medo de ir ao seu inesperado encontro.
Por isso que eu chorei tantas lágrimas para que não precisasse chorar, sem saber que criava um mar de pranto em cujos vórtices te haverias também de perder.

E amordacei minha boca para que não gritasses e ceguei meus olhos para que não visses; e quanto mais amordaçado, mais gritavas; e quanto mais cego, mais vias.

Porque a poesia foi para mim uma mulher cruel em cujos braços me abandonei sem remissão, sem sequer pedir perdão a todas as mulheres que por ela abandonei.

E assim como sei que toda a minha vida foi uma luta para que ninguém tivesse mais que lutar:

Assim é o canto que te quero cantar, Pedro meu filho...

sem título X

Pais são como estaleiros: cada filho é um barco, que é forjado com carinho e atenção. Cuidado com o lastro, escolher o motor correto, a melhor madeira... Cada detalhe é pensado com muita calma para que o barco possa navegar em paz.

Então eles se acham prontos e querem ir. Não adianta dizer que ainda faltam alguns detalhes essenciais: mapas, bússolas, cartas náuticas. Não adianta gritar que os instrumentos precisam de ajustes. Não, eles cortam as amarras e vão.

E, ao estaleiro resta esperar. Que ele volte para uma visita de tempos em tempos, que ele apareça para trocar algumas peças avariadas, retocar o verniz...

Ficamos em terra firme, ao lado do farol, esperando...


Cais
Milton Nascimento/Ronaldo Bastos



Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar







domingo, 19 de dezembro de 2010

Dessas coisas que mudam tudo



Visão de cego
(Guinga- Aldir Blanc)

Um riso escancarado
de branco parafina
na boca tangerina...

O cego me fez
ver mil Brasis de uma só vez
nas fitas das Folias de Reis
ô cego alucinado:
barro marajoara
na colcha de retalho.

O cego me faz
ver mil Brasis e ainda mais
nas cianinhas dos carnavais
vou de liforme branco
na dorival jogada
na asa da jangada
eu vou por cima d'água,
a namorada do céu
sou herói de cordel.

O cego quer ver
alguém cantar em javanês
aboio triste no entardecer
cego surrealista:
um trem de celofone
trilhando um xilofone.

O cego me faz
ver nos vestidos dos varais
as prostituras louras do cais
o mar desde Arraiolo
na água pro monjolo,
o fio da navalha,
o couro da sandália,
a talhadeira e o cinzel:
cordas de um menestrel.

Na carranca branca da barcaça
a garça da alma pousou...
com licor do guapo genipapo
um gaio papagaio eu sou...
De porre, num fogo romã de manhã
a saudade que eu trouxe
me faz ver Oxum de bermuda,
- me acuda! fazendo windsurf
na ponta de Itapoã,
no rio Maracanã...

E o cego me diz
Que ela é feliz
Com tantos Brasis:
um riso escancarado
de branco parafina
na boca tangerina.

Guinga: voz e violão
Boca Livre (Zé Renato, Fernando Gama, Lourenço Baeta e Maurício Maestro): vozes
Marcos Suzano: percussão
Zé Nogueira - teclados


sem título IX


Adoro gente. Adoro estar entre gentes. Eu preciso de gente. Gente é minha matéria-irmã. É a forma como elas me afetam que faz de mim quem eu sou.

Paradoxalmente, é a solidão que me mantém sã. Preciso de pequenos afastamentos, reclusões profundamente profícuas. Preciso desse encontro metafísico meu-comigo-mesma-sem-mais-ninguém. Ufa!

Nesses momentos eu, eu mesma e a outra, colocamos tudo em ordem. Algumas conversas viram letras, outras pó...

(“Mas eu sinto que eu tô viva
a cada banho de chuva
que chega molhando meu corpo nu”)*

... somos tão diferentes e tão profundamente iguais. Não há tristeza nesse encontro, nem culpa. Nos mostramos e nos aceitamos como somos. Muitas vezes somos cruéis demais.

É essa dose regular de mim, que mantém as coisas no lugar. Que me equaliza.  

(“Eu sou assim,
se quiser gostar de mim,
eu sou assim... ")**


* Deja vù - Pitty
** Meu mundo é hoje - Wilson Batista

sábado, 18 de dezembro de 2010

das verdades











dois dedos de whisky e nenhuma vergonha na cara...

prenhe de sons

Temporal
Pitty


Chega simples como um temporal
Parecia que ia durar
Tantas placas e tantos sinais
Já não sei por onde caminhar.

E quando olhei no espelho
Eu vi meu rosto e já não reconheci
E então vi minha história
Tão clara em cada marca que tava ali.

Se o tempo hoje vai depressa
Não tá em minhas mãos
Cada minuto me interessa
Me resolvendo ou não.

Quero uma fermata que possa fazer
Agora o tempo me obedecer
E só então eu deixo
Os medos e as armas

Chega simples como um temporal
Parecia que ia durar
Tantas placas e tantos sinais
Já não sei por onde caminhar

E quando olhei no espelho
Eu vi meu rosto e já não reconheci
E então vi minha história
Tão clara em cada marca que tava ali.

Se o tempo hoje vai depressa
Não tá em minhas mãos
Cada minuto me interessa
Me resolvendo ou não.

Quero uma fermata que possa fazer
Agora o tempo me obedecer
E só então eu deixo
Os medos e as armas

Eu deixo os medos e as armas
Eu deixo os medos e as armas pra trás
E as armas pra trás
E as armas pra trás...

sem título VIII

sem título VII

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Só Você

Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes

É você
Só você
Que na vida vai comigo agora
Nós dois na floresta e no salão
Nada mais
Deita no meu peito e me devora
Na vida só resta seguir
Um risco, um passo, um gesto rio afora

É você
Só você
Que invadiu o centro do espelho
Nós dois na biblioteca e no saguão
Ninguém mais
Deita no meu leito e se demora
Na vida só resta seguir
Um risco, um passo, um gesto rio afora
Na vida só resta seguir
Um ritmo, um pacto e o resto rio afora

pensamentinho

Não é a solidão, essa mancha que tinge tudo. Não é o medo, gaiola fechada. Não é o desejo, iceberg no mar. Não, não é. É só esse nó que sufoca e arranha. Esse po´que cobre meus móveis. Esse imenso vazio repleto de sonhos que sou eu.

Lá fora

É noite e chove,
não há nuvens
ou estrelas.
Só a noite
e a chuva.
Um homem
passa apressado.
Uma mulher
Toma café.
A noite é escura.
A chuvafria
e fina.
No asfalto os pneus
dançam.
É noite e todos
dormem.
Coloco meu corpo
na cama e
vou pra rua,
pra chuva,
pra noite escura
e molhada.
Molhada
eu vou.

Passaraio

Passa tempo
passa vento
passa sol
...
e nada acontece.

sem título VI

Não sou forte, não sou nobre,
não sou boa, não sou má,
não sou bela nem sou feia,
não sou tela, tinta ou areia,
não sou moldura.

Não sou doença nem cura,
não sou louca, não sou santa,
não sou modelo, almoço ou janta.

Não sou nada.

sem título V

Eu, floresta de carvalho
coberta de musgos.
Velha árvore entre muitas.
Sem ninhos ou esquilos,
sem balanço, sem descanso.

Eu, barreira de corais
coberta de algas.
Velho recife entre muitos.
Sem peixes ou mariscos,
sem descanso, sem remanso.

Eu, mansão vitoriana
repleta de quartos.
Velha morada entre muitas.
Sem tapetes ou cortinas,
sem remanso, sem visitas.

Eu, oceano de estrelas
repleto de sal.
Velha rota entre muitas.
Sem navios ou jangadas,
sem visitas, sem cardumes,
sem viço, sem nada.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A Página do Relâmpago Elétrico

Beto Guedes e Ronaldo Bastos


Abre a folha do livro
Que eu lhe dou para guardar
E desata o nó dos cinco sentidos
Para se soltar
Que nem um som clareia o céu nem é de manhã
E anda debaixo do chão
Mas avoa que nem asa de avião

Pra rolar e viver levando jeito
De seguir rolando
Que nem canção de amor no firmamento
Que alguém pegou no ar
E depois jogou no mar

Pra viver do outro lado da vida
E saber atravessar
Prosseguir viagem numa garrafa
Onde o mar levar
Que é a luz que vai tescer o motor da lenda
Cruzando o céu do sertão
E um cego canta até arrebentar
O sertão vai virar mar
O mar vai virar sertão

Não ter medo de nenhuma careta
Que pretende assustar
Encontrar o coração do planeta
E mandar parar

Pra dar um tempo de prestar atenção nas coisas
Fazer um minuto de paz
Um silêncio que ninguém esquece mais
Que nem ronco do trovão
Que eu lhe dou para guardar

A paixão é que nem cobra de vidro
E também pode quebrar
Faz o jogo e abre a folha do livro
Apresenta o ás
Pra renascer em cada pedaço que ficou
E o grande amor vai juntar
E é coisa que ninguém separa mais
Que nem ronco de trovão
Que eu lhe dou para guardar


segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Exercendo outros eus: I I I


Déjà Vu
Pitty



Nenhuma verdade me machuca
Nenhum motivo me corrói
Até se eu ficar
Só na vontade, já não dói
Nenhuma doutrina me convence
Nenhuma resposta me satisfaz
Nem mesmo o tédio me surpreende mais

Mas eu sinto que eu tô viva
A cada banho de chuva
Que chega molhando o meu corpo nú

Nenhum sofrimento me comove
Nenhum programa me distrai
Eu ouvi promessas e isso não me atrai

E não há razão que me governe
Nenhuma lei pra me guiar
Eu tô exatamente aonde eu queria estar

Mas eu sinto que eu tô viva
A cada banho de chuva
Que chega molhando o meu corpo

A minha alma nem me lembro mais
Em que esquina se perdeu
Ou em que mundo se enfiou

Mas já faz algum tempo
Já faz algum tempo
Já faz algum tempo
Faz algum tempo

A minha alma nem me lembro mais
Em que esquina se perdeu
Ou em que mundo se enfiou

Mas eu não tenho pressa
Já não tenho pressa
Eu não tenho pressa
Não tenho pressa

Ave Caetano!


O Quereres
Caetano Veloso


Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde o queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói

Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock?n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus

O quereres e o estares sempre a fim
Do que em ti é em mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há, e do que não há em mim